Energia

Desperdício de energia desafia transição na América Latina

Quase um quinto da eletricidade gerada na região não chega ao consumidor final. Especialistas cobram mais planejamento, investimento e fiscalização no setor
<p>Técnico remove fiação de um poste em Porto Alegre, Brasil. Infraestrutura precária, conexões clandestinas e limitações em transmissão e armazenamento são comuns nas redes elétricas da América Latina, resultando em desperdício de eletricidade (Imagem: Pedro Piegas / PMPA)</p>

Técnico remove fiação de um poste em Porto Alegre, Brasil. Infraestrutura precária, conexões clandestinas e limitações em transmissão e armazenamento são comuns nas redes elétricas da América Latina, resultando em desperdício de eletricidade (Imagem: Pedro Piegas / PMPA)

A América Latina deu passos significativos em direção à sua transição energética. A região já gera 60% de sua eletricidade a partir de fontes renováveis, índice que deve seguir aumentando, segundo a Agência Internacional de Energia.

No entanto, um fator ainda negligenciado na redução das emissões de carbono do setor de energia é a taxa de perda de energia elétrica — a diferença entre a quantidade de eletricidade gerada e a que de fato chega aos consumidores. Na América Latina, ela atingiu, em média, 17% ao ano nas últimas três décadas, conforme um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). 

O documento observou que esse índice é três vezes superior ao registrado nos países desenvolvidos e, indiretamente, despeja mais de cinco a seis milhões de toneladas de emissões anuais de dióxido de carbono por ano, o equivalente à poluição gerada por 1,3 milhão de carros no mesmo intervalo de tempo.

Alguns especialistas chamam isso de “emissões compensatórias”, pois demandam mais geração elétrica para compensar as perdas. Os países da região com uma matriz elétrica mais dependente de combustíveis fósseis, como Argentina, México e Colômbia, são os principais responsáveis por essas emissões. 

As perdas de energia afetam todos os países latino-americanos e ocorrem por motivos técnicos e não técnicos. Os técnicos envolvem falhas nas linhas de transmissão e distribuição, principalmente devido à falta de investimento e manutenção na infraestrutura. Já os não técnicos correspondem à energia consumida, mas não paga pelos usuários, como as conexões clandestinas (os chamados “gatos de luz”).

“As perdas de energia podem afetar o cumprimento das metas climáticas”, destacou Ana Lía Rojas, diretora-executiva da Associação Chilena de Energia Renovável e Armazenamento (Acera), ao Dialogue Earth. “Cada unidade de energia perdida representa um aumento na geração para atender à demanda”.

Perdas de energia elétrica

A maior parte da eletricidade é produzida em usinas e percorre longas distâncias por linhas de transmissão de alta tensão. Ela chega aos consumidores por meio de redes de distribuição — os postes e fios que abastecem desde casas a estabelecimentos comerciais. Essa infraestrutura pode sofrer vários problemas técnicos que resultam em perdas de energia.

Alguns casos incluem as perdas provocadas pela resistência do material condutor pelo qual a energia flui, a infraestrutura desgastada e o mau funcionamento de transformadores. Embora esses sejam problemas inerentes à transmissão elétrica, especialistas concordam que há uma falta generalizada de investimento em redes de transmissão e distribuição na América Latina.

“Os tomadores de decisão priorizam a produção de energia, e a rede de distribuição é deixada em segundo plano. É preciso investir paralelamente na rede e na geração — o sistema precisa ser visto como um todo”, disse Ramón Méndez, ex-diretor de energia do Uruguai, ao Dialogue Earth. “Uma infraestrutura deficiente pode se tornar um grande problema econômico e técnico”.

Entre 2015 e 2021, o investimento em infraestrutura de distribuição e transmissão na região caiu 40%. Para além das perdas de energia, isso torna as redes vulneráveis a eventos climáticos extremos e pode afetar o fornecimento de eletricidade — sobretudo para as populações marginalizadas.

Vista aérea de painéis fotovoltaicos que cercam grandes porções de árvores, como se fossem lagos integrados à vegetação
Painéis solares integrados à vegetação do município Sabanalarga, noroeste da Colômbia. A maior parte da eletricidade é produzida em grandes usinas localizadas em áreas remotas para depois percorrer longas distâncias, o que significa que até mesmo a energia renovável pode sofrer perdas (Imagem: Juan Diego Cano / Presidência da Colômbia, PDM)

Na América Latina, a maioria das perdas de eletricidade ocorre no sistema de distribuição. Isso se deve principalmente a fatores não técnicos, como as conexões clandestinas, explicou Santiago López Cariboni, professor de economia na Universidade da República do Uruguai e coautor do relatório do BID sobre o tema.

“É energia produzida e transportada, mas não consumida legalmente. As pessoas quebram ou adulteram medidores ou passam um cabo direto da rede elétrica para suas casas ou empresas”, exemplificou López Cariboni. “Mesmo que os governos pudessem cortar a energia de todas essas unidades, eles não o fariam, porque isso criaria um enorme problema socioeconômico”.

Um usuário que usa eletricidade clandestinamente consome até três vezes mais do que os outros, estimou López Cariboni. Ao não pagar a conta de luz, as pessoas não são pressionadas a controlar o gasto de energia ou adotar tecnologias de baixo consumo. Segundo o relatório do BID, as conexões clandestinas estão relacionadas ao crescimento desordenado das cidades latino-americanas nas últimas décadas.

Geração renovável mal aproveitada

Embora não gere emissões significativas, a energia renovável também pode causar um problema de desperdício de energia. Isso aconteceu recentemente no Chile. A participação da energia solar e eólica atingiu um recorde de 40% na matriz elétrica do país em 2024. Porém, à medida que o peso dessas fontes aumenta na capacidade instalada, também cresce outro fenômeno: é o chamado curtailment, ou seja, a restrição deliberada na geração de energia.

Isso ocorre porque o desenvolvimento de projetos renováveis avança muito mais rapidamente do que a capacidade de transmissão e armazenamento. Como resultado, em 2024, 5,9 mil gigawatts-hora (GWh) de energia foram desperdiçados no Chile, 148% a mais do que em 2023. Esse número representa 20% da energia solar e eólica gerada pelo país, estimou Ana Lía Rojas, da Acera.

Jorge Leal Saldivia, sócio da empresa chilena de energia renovável LAS Energy, disse que esse desperdício corresponde principalmente à energia solar gerada no norte do país. “A infraestrutura de transmissão não está pronta para levar essa energia ao centro e sul do Chile. As linhas ficam congestionadas e a energia tem que ser descartada”, disse ele ao Dialogue Earth.

Rodrigo Palma, pesquisador do Centro de Energia da Universidade do Chile, disse que houve atrasos no planejamento energético do país: “O lançamento de projetos de energia solar e eólica não parou, e a capacidade estatal de construção de infraestrutura não acompanhou esse ritmo. Isso pode atrasar a penetração das energias renováveis em nosso sistema energético”.

Até 2040, todas as usinas elétricas movidas a carvão terão de parar de operar no Chile. Espera-se que isso seja compensado principalmente pela energia renovável. Em abril, o governo abriu uma licitação para oito novos projetos de modernização da rede, somando-se aos 12 projetos lançados no ano passado. Uma das maiores iniciativas, a linha de transmissão Kimal-Lo Aguirre, está sob revisão após pressões de ativistas socioambientais.

Possíveis soluções

Metade dos 26 países analisados no relatório do BID sofreu aumento nas perdas de energia nos últimos anos, destacando a urgência de encontrar soluções para o problema. Honduras, Venezuela e República Dominicana perdem mais de 30% de sua energia elétrica, seguidos por mais de 20% na Jamaica, Paraguai e Guiana. O BID também destaca como as redes enfrentam vulnerabilidade e impactos crescentes devido às mudanças climáticas.

Para aqueles que não podem pagar pela eletricidade, o Estado deveria assumir essas perdas e integrá-las em seu orçamento
Santiago López Cariboni, professor de economia da Universidade da República do Uruguai

Os especialistas consultados pelo Dialogue Earth destacam a necessidade de um planejamento abrangente por parte dos governos para lidar com as perdas. Para as técnicas, a incorporação de tecnologia pode ajudar, como medidores inteligentes e armazenamento. Para as não técnicas, é necessário analisar o tema sob uma perspectiva de política social, observou López Cariboni.

“As sociedades justificam o roubo de energia elétrica como uma forma de atender a uma necessidade básica; elas veem a energia como um direito”, acrescentou. “Para aqueles que podem pagar, você pode trabalhar com sanções e regulamentações. Mas, para aqueles que não podem pagar, o Estado deveria assumir essas perdas e integrá-las em seu orçamento. É mais gasto público, mas é uma despesa que já está sendo feita”.

Martin Dapelo, membro do conselho de administração da Câmara Argentina de Energias Renováveis, questionou a falta de progresso na região em relação aos medidores inteligentes. “É o primeiro grande passo. Estamos perdendo a possibilidade de medir isso em tempo real”, disse ele ao Dialogue Earth. Enquanto isso, o Chile até agora foi o único país da região a apostar na construção de usinas de armazenamento de energia.

A geração distribuída — energia gerada em pequena escala pelos próprios consumidores — também está na lista de possíveis soluções para a região. Esses sistemas se baseiam na instalação de placas solares ou turbinas eólicas no local de consumo, como em residências ou indústrias. Isso diminui a necessidade de transporte a energia, reduzindo a sobrecarga da rede.

“Nós nos acostumamos com a ideia de que mercado decide qual direção tomar no setor de energia. O caso do Chile, com excesso de oferta de energia solar, mas sem redes de transmissão, mostra que esse não é o caso”, disse Méndez. “O sistema ideal é aquele que analisa o todo e determina a melhor combinação”.

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